06 janeiro 2008

© murakami


tomando de assalto um chavão alheio, é preciso estar dentro do avião para o poder desviar. infelizmente, tal não parece acontecer com o trabalho do japonês takashi murakami, exposto até 11 de fevereiro no museum of contemporary art de los angeles (la moca). preparou-se um olhar panorâmico sobre a obra deste artista: o arco cronológico começa no início dos anos 90 do século passado e avança até ao presente. o resultado é pouco estimulante: as formas vão avançando em presença, volumosas, estridentes, mecânicas, habitando o legado da cultura popular e nela se escudando. e no entanto... nem sequer se pode falar de supresas no desfiar da exposição; a estranheza face a alguns dos personagens da máquina murakami fácilmente se esvazia de mistério.


neste caso concreto, o trabalho de murakami estará aparentemente ancorado em elementos cruzados da tradição e modernidade japonesas, como (pelo menos nos termos mais reféns do discurso mediático que temos para nos servir) parece ser apanágio de toda a produçao cultural oriunda daquele país - sempre que o ocidente (e é sempre o ocidente que quer ouvir desta forma 'os outros') ouve falar da cultura japonesa contemporânea, a marca está já definida: casamento entre a herança milenar e o presente asfixiado pela tecnologia e pelo consumo… nunca há rupturas ou diferenças a assinalar esta convergência, para a qual sem dúvida terá igualmente contribuido takashi murakami. onde andarão os herdeiros de yoko ono nesta altura?(a existirem, como sem grande imaginação podemos intuir, para que servem? como servem? como diria alguém, não há ninguém fora do sistema; o sistema somos todos nós)


entendido como uma mais-valia, um argumento foi usado em defesa da instituição, por quem a representa, para justificar a exposiçao de murakami; as suas traduções da cultura japonesa seriam uma forma de resistência à massificação cultural imposta pelo ocidente. com este argumento nem apetece perder tempo; assinalo apenas que foi a ideia suportada para legitimar a existência, dentro da própria exposição, de uma loja louis vuitton que exibe e vende os productos concebidos por murakami para a empresa francesa, o que suscitou alguns protestos e comentários por parte de agentes do meio cultural de los angeles, mais ou menos ligados ao museu. parece que ninguém se importa muito com o ridículo ou a riqueza do paradoxo.


estas podem ser certamente entendidas como questões realmente periféricas em relação aos trabalhos de murakami, fortemente propulsionados por questões formais tão enebriantes visualmente como rasurantes quando se ensaia uma aproximação às ideias do autor. uma criança de cinco anos pode testemunhar isso mesmo.
mas podem de igual modo ser lidas como basilares numa abordagem que dê privilégio ao elemento dinheiro: é que tudo está presente sob o signo do mesmo. desde a fila ansiosa de visitantes que desejam (palavra-chave) comprar os múltiplos (depois ou talvez mesmo antes de os verem expostos) disponibilizados através da loja/livraria do museu, totalmente colonizada por artigos desenhados por murakami, despida de qualquer função que não o comércio; até à tapeçaria que cobre o chão da enorme sala onde se projectam com grande sucesso as experiências de animação do estúdio murakami (o video aparece, sem sobressaltos, como o suporte formalmente mais interessante a ser usado pelo artista e a sua companhia de produção); quer através da citada presença da empresa louis vuitton, apesar do seu espaço não se encontrar posicionado num ambiente familiar mas sim ligeiramente deslocado para o lado (e estou a supor, desconheço o interior de outros espaços da mesma empresa) e por isso mesmo permitir pensar em outras confluências de representação sobre o poder (económico, artístico; politico); quer ainda, para fechar a ideia da presença da produção, na formalidade dos objectos apresentados: monumentalidade, valor literal do trabalho implicado e dos materiais e técnicas escolhidos, condições de produçao dos projectos, etc.


ainda neste contexto, merece nota a proveniência das obras expostas… notei que um casal de los angeles disponibilizou muitas delas, o que pode levar a pensar a exposição noutras direcções, como a que põe em contacto as realidades históricas entre o japão e em particular a costa oeste dos estados unidos… mas o devaneio sustenta-se apenas durante breves segundos. depois o caudal acaba por voltar ao mesmo: o dinheiro e os seus fluxos a atravessarem e ocuparem de forma vibrante a construção e disseminação de um trabalho artístico que, expondo-se dessa forma também ela celebratória (e talvez involuntáriamente incómoda nessa mesma condição, sobretudo para certas castas mais ‘puristas’ e equívocadas que veem os seus trunfos ocupados e logo soltam as inevitáveis acusações de deturpação), acaba por ver as suas propostas secarem até se tornarem estéreis, precisamente por não se ocuparem dessa presença financeira com outra seriedade, optando, por exemplo, por traduzir a experiência simbólicamente única da devastação atómica no japão (que a cultura popular japonesa soube apropriar e bem em productos que vão do popular ‘godzilla’ até ao maldito ‘emperor tomato ketchup’, para – significativamente – ficar só pelo cinema) sob a forma de uma nuvem negra (ou branca, para dar andamento à ocupação pela variante com que as obras se parecem disseminar), com ar de caveira. não era precisa tanta subtileza… mas mais sinais são deixados no fecho da visita, com as obras mais recentes (ver a segunda imagem que acompanha este texto), a perderem a nítidez das obras iniciais, materializando uma outra paleta mais agressiva, um outro ruído construído ‘por dentro’ das obras e ainda pelas suas superficies, procurando outras direcções pouco divergentes e tornando essa mesma vontade num exercício de estilo pueril, fácilmente descortinado… curioso é o aparente silêncio em torno das referências a estas ‘rupturas’ mais recentes de murakami… o que prevalece é o que vende? serão derivações pouco sérias? não interessam?


voltando um pouco ao centro dos trabalhos, uma vez que na periferia pouco há para pensar apesar de haver muito para ver (e para comprar), com tanto dinheiro em jogo na produção das obras e na articulação da sua mostra, éticamente talvez não se possa fugir muito quer de um assobiar para o lado face às misérias da condição humana, quer de um mergulho de cabeça na experiência do capital. na minha opinião, partiria daqui um golpe de asa mais conciso e necessário ao artista; simplesmente, o convite ou incitamento não resulta porque não se afirma, com o autor nítidamente mais entretido em entreter. suponho (mas posso estar enganado… murakami pode ser muito mais inteligente do que um primeiro embate deixa perceber) que é em delírio que me deixo derrapar para este terreno, uma vez que as propostas concretas não me aquecem nem arrefecem nos seus próprios termos, ao contrário do que parece acontecer com a maioria dos visitantes do moca.


ou seja, relaccionar materialismo e espiritualidade (haveria melhor local para o fazer do que na cidade que acolhe a exposição? provavelmente, também por aqui se perde uma oportunidade) ocorre mais a partir daquilo que vou construindo durante e depois da visita à exposição, em torno dela, do que exactamente com o que ela concretiza ou efectivamente é. até aqui tudo bem, mas fico quase certo de que o despoletar deste processo, para mim estimulante, pouco se relaciona com o programa de murakami: materializar as figuras/personagens, que lá vão oscilando entre o delírio pagão ou místico (a batuta é que é sempre religiosa, mesmo que sob um pretenso olhar crítico, o que também dá que pensar).
mas como também tenho sempre presente, nós não vemos as coisas como elas são e sim como nós somos. Enfim, outro chavão alheio tomado de assalto…



bem a propósito, e como bónus, aqui fica um exemplo do melhor que murakami e a sua companhia de produção tem para oferecer... o juízo quantitativo deixo-o para quem dele se quiser ocupar. a minha opção inicial cairía sobre o vídeo que acompanha 'good morning', uma fabulosa música de abertura no último trabalho do músico kanye west (do qual a companhia murakami é responsável no que toca ao projecto gráfico); infelizmente, parece que esse vídeo só pode mesmo ser visto na exposição, pelo que aqui fica um dos resultados da colaboração entre as empresas murakami e louis vuitton. como sugestão para acompanhar este brinquedo, proponho pensar-se sobre a relação entre a institucionalização da cultura urbana japonesa e a que ocorre ainda sobre o hip-hop contemporâneo norte-americano. sob o signo, claro está do 'bling', sobejamente representado pela empresa de productos luxuosos. é bela, a complexidade do mundo!


© murakami, de 29 de outubro a 11 de fevereiro, MOCA the museum of contemporary art, los angeles (núcleo geffen contemporary)

2 comentários:

Anónimo disse...

muito bom, o texto.

nuno disse...

obrigado. tentei soltar umas pontas para que certas matérias possam ser pensadas a partir do texto, à semelhança do que foi a minha experiência na visita à exposição de murakami.