já assistimos num qualquer reality show às palavras sentenciadas em directo, ou não, num "confessionário". é um dispositivo semelhante que a carla filipe convoca no projecto obrigado pela conversa. durante uma hora, frente a uma câmara, a artista fala para alguém que adivinhamos presente mas não vemos – afinal, somos nós o interlocutor privilegiado – sobre um assunto que, em última instância, nos vai dizer directamente respeito... o espaço da acção é uma sala ou um quarto, onde se vê uma porta aberta como único ponto de fuga.
não há aqui engodo algum: ao longo da duração da peça, sente-se que a artista não se abstrai totalmente da câmara, nem seria essa a sua intenção. na conversa informal que se seguiu à primeira exibição deste trabalho, alguém sugeria que ali havia necessariamente uma encenação, uma presença menos “natural” com gestos calculados. mas ainda hoje é altamente improvável que qualquer pessoa se comporte como se nada se passasse de estranho em frente a uma câmara. este trabalho não é sobre alguém "apanhado" por uma câmara de filmar. paradoxalmente, é no dia-a-dia (mais ou menos alheado das câmaras) que ocorrem as situações onde se espelha uma assimilação comportamental generalizada de tiques e parâmetros mediáticos.
reforçando uma propriedade de artifício, que passa pela apresentação de uma personagem e não apenas uma pessoa, o plano da imagem que nos é dada a ver remete para a situação física do intérprete/plateia, própria do imaginário do espaço cénico – ou seja, para o campo da representação.
por afinidade, vem à memória a peça escrita por jean cocteau, a voz humana: uma conversa telefónica entre um homem e uma mulher, amantes, sendo que aos espectadores só é dado a conhecer o ‘monólogo’da personagem feminina.
aqui também é uma mulher que está em discurso directo, quem sabe se no mesmo contexto: o vestido vermelho usado pela artista talvez não tenha sido escolhido ao acaso. com a diferença fundamental de que não há som para nos alimentar a curiosidade. não há som, mas obviamente há linguagem.
as histórias que a carla tem apresentado regularmente no seu trabalho prendem-se também com a condição feminina, que é a sua. são obras que remetem para a sua experiência pessoal de forma mais ou menos velada, igualmente habitadas por personagens verídicas. os impressionantes desenhos intrincados que compõem parte da sua produção artística sublinham – literalmente – a realidade de leitura de uma obra de arte e a possibilidade de explorar o nosso voyeurismo de espectador: são trabalhos onde se cruza o excesso da palavra com a sua condição primordial de desenho; onde a limpeza lógica não é bem-vinda e se avança aos solavancos.
neste trabalho, essa palavra (aqui, verbalizada) foi fisicamente suprimida mas permanece como a peça essencial que provoca o imaginário do espectador. continua igualmente a ser explorada a questão da auto-representação – e aqui peço a quem ler este texto que faça uma pausa para efectivamente reflectir sobre essa expressão. parece-me mesmo que é disso que neste projecto se trata: ‘represento (isto) para mim, represento (aquilo) para os outros, o meu trabalho representa isto para mim, isto é o que o meu trabalho representa para os outros’. como sabemos, as próprias palavras podem ser saborosas, mas não são muito mais do que representações.
por isso, faz sempre parte do processo de comunicação verbal seleccionarmos mais ou menos cuidadosamente as palavras que dirigimos aos outros. numa conversa, a situação mais simples, imaginamos duas pessoas a trocarem ideias. a certa altura, uma delas defende de forma mais acesa a sua opinião a respeito de um qualquer assunto. a troca dá lugar ao jogo ou, em última análise, a uma batalha: o objectivo é subjugar o outro com mais ou menos estratégia e subtileza, com maior ou menor prazer para ambas as partes. o cliché sobre o amor e a guerra e como aí vale tudo tem uma nitidez extraordinária se o pensarmos aplicado a uma qualquer conversa, e possivelmente, aquilo que a artista nos propõe é uma espécie de diálogo.
para quem assiste a este vídeo há sempre o direito de assumir um lugar activo. somos impelidos com naturalidade para o acto violento que é precisamente tentar cobrir o discurso com as palavras que lá não encontramos. esse acto denota alguma frustração perante a ausência de produção de um significado, que legitimamente se espera resultante de um acto de comunicação; por aí também emerge a nossa vontade primária de sobrepormos o nosso discurso ao do outro.
eliminar voluntariamente o som da fala, como acontece neste projecto, não será por si só uma renúncia a essa matéria, mas é uma pedra de toque eficaz: por exemplo, levou-me a pensar no que em última instância conduz alguém a um fazer voto de silêncio, ou no efeito que socialmente alguém produz ao falar pouco, voluntária ou involuntariamente, ou nos sinais de conforto e desconforto de algumas conversas. enfim, não são necessariamente pontos de referência válidos para muitos, mas para mim são questões da ordem do banal – tão badalada nestes dias – em torno das quais não se encontra muita produção.
no mundo que reconhecemos saturado também pelos sons, recusamo-nos a permitir que o silêncio seja de ouro, de facto. o silêncio atrapalha-nos, não é matéria do campo social, e no plano da intimidade é objecto de estranheza. é uma espécie de mal necessário.
sobram-nos os gestos, e sobre eles não se pode dizer que sejam todos representações de algo. ao longo de uma hora de obrigado pela conversa podemos presenciar vários movimentos económicos, que não tem nada a ver com caprichos de espontaneidade ou vontade. são coisas que é preciso fazer segundo um cálculo mínimo biológico, de sobrevivência. respirar, parar de falar, olhar para o lado, a fragilidade ou irritação transparentes são elementos que se misturam de forma fluída com pausas dramáticas, o cabelo mexido compulsivamente, mais um cigarro fumado, o virar de costas e o desaparecer de “cena”.
parece-me certo que nesta performance o comunicável é conduzido através da oralidade (tornada ineficaz) em direcção aos gestos, ou melhor, até à mais ampla linguagem de um corpo – a tal que muitas vezes nos desarma de palavras que a expliquem ou justifiquem. mais do que noutras alturas a expressão da laurie anderson, sobre a linguagem ser um vírus, faz sentido. é para aí, com mais ou menos divergência, que a concentração do espectador também se dirige. os gestos que vemos, mesmo se ensaiados a frio diante da câmara de filmar, não se transformam em caricaturas, nem tampouco resultam de uma pesquisa estética com uma finalidade coreográfica. são sinais de diferente intensidade e acompanham os momentos de maior ou menor inscrição que conseguimos ler nestas imagens silenciadas.
quanto é que nessa situação se produz de apagamento ou enriquecimento do próprio, como somos moldados pelo uso da palavra foram para mim ideias levantadas por este projecto. outras questões surgiram necessariamente, tais como pensar sobre quais as condições de representação inscritas no indivíduo; na comunicação deste com outros; o que estrutura e separa uma conversa, de uma entrevista, confissão, discussão, etc.
tirando partido do nosso instinto de interpelar, e face à nossa relutância perante um duelo que não aposta nas armas habituais e por isso pode conduzir-nos ao alheamento em relação a toda a proposta, foi sugerido no início da sessão que cada espectador registasse numa folha as impressões sobre as imagens ou diálogos possíveis para as mesmas. para mim, foi a parte menos conseguida de um projecto que se lançou muito bem numa direcção difícil, a contrastar com a conversa espontânea surgida no final, essa sim verdadeiramente reveladora sobre a motivação do público - e o que este trabalho conseguiu inscrever nele.
2 comentários:
Título
Textos críticos S/Orçamento
(não é um elogio ao trabalho de graça,mas sim à vontade de fazer independentemente de tudo)
Comentário por linguagem informal:" Escrever conforme se Fala"
Não temho hábito de consultar blogs,uma das muitas razões é a minha dificuldade de concentração em ler textos através de um monitor.Hoje perdi(me) algum tempo neste mundo...estava em dívida para com o Nuno Ramalho.Enviou-me um sms a dizer que tinha escrito um texto sobre o meu trabalho"Obrigado pela conversa" , não podia passar mais tempo,a qualquer momento poderia encontrá-lo na rua e não tinha "cara" para dizer que ainda não tinha lido o texto!
O que leva a escrever não é para falar o que o Nuno Ramalho escreveu sobre o meu trabalho mas sim para partilhar o meu contentamento ao ver que finalmente existe pessoas a escrever sobre o que se está a passar agora, desde artistas, economistas,desempregados, doutorados e autodidactas. As pessoas estão com vontade de escrever sem pensar ficar á espera de um estágio não-renumerado numa edição diária ou trimestral.
Uma das razões de haver pouca crítica em Portugal é a falta de suporte para escrever,as revistas são escassas e os Jornais não abre o leque a mais autores.
Ao entrar na SombraChinesa entrei em outros links dentro dos quais o da Arte Capital e fiquei bastante contente ao ver artigos como o do José Roseira a falar ,finalmente,do trabalho do Gustavo Sumpta.Como também gostei de ver um texto do Nuno sobre o vídeo da Marta Bernardes "Ocidente" que seria impensável algum crítico escrever sobre este trabalho sendo o seu 2ª/3º trabalho apresentado publicamente. Normalmente há sempre uma contenção para escrever sobre trabalhos de artistas com escassa ou média produção porque está sempre associado a uma ideia de risco ou à ideia de promoção da parte de quem o escreve,para com o artista.São os vícios desta profissão.
Sempre tive esta obesseção que aparecesse mais pessoas a escrever.No ano passado resolvi fazer um dossier com textos escritos à máquina (tem um toque musical)sobre o trabalho de alguns autores como: o Eduardo Matos;o Arlindo Silva; a Dandy; Renato ferrão; Nuno ramalho, Isabel Ribeiro;Manuel dos Santos Mais e Susana Chiocca mas parei...dei-me a queó as pessoas mais chegadasé que percebiam o meu português...o que para mim era óbvio era difícil de entendimento para os outros,fez-me perder o entusiasmo por agora....Pretendia com esse dossier motivar a escrita de opinião para já, e quem sabe a crítica mais tarde.
Normalmente os artistas trabalham endividados, acumulando mais dívidas e nunca percebi porque é que na escrita que o custo de criação e pensamento resume-se a papel,tinta e tempo isso não acontece, possibidades :fanzines com reduzida edição;fotocópias ou o blog.
A Revista Salão Olímpico nº0 foi um meio para editar textos,ensaios,opiniões de várias pessoas, a nº1 tem muitos textos para serem impressos dedse ano e meio é o que acontece quando se quer fazer uma edição independente falta o dinheiro! Outoros exemplos a "Satélite Internacional" tem um número só com texto, e outros escassos exemplos que agora não me recordo.Este texto é totalmente improvisado e não fiz o trabalho de Casa e nem vou fazer a revi´~ao deste texto por preguiça e falta de tempo.
Dentro da Literatura existe discussões se é válida a crítica feita por escritores a outros escritores nas Artes plásticas está de longe a existência desse problema.Prefiro que se escreva e que se tenha escrito de tanta coisa que ficou por dizer como:o "Bocejo" de Isabel Ribeiro;das performance do Gustavo Sumpta;da Amélia Alexandre,de uma abordaGEM AO TRABALHO todo do Manuel dos Santos Maia,dos vídeos do Eduardo Matos;da dupla Renato Ferrão e Nuno Ramalho e destes individualmente e do Arlindo Silva e fico por aqui.
a)Acabo o texto amanhâ
Parabéns pelo blogue e olá Carla, não vi o video, mas foi como se o ouvisse!
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